Carol Santos, 20 anos, líder de jovens de igreja
Apesar do bom resultado para políticos, para parte dos fiéis
religião e político não devem se misturar
Ela não é o tipo de garota que, segundo o senso comum,
estaria na porta de uma igreja evangélica, numa gélida quarta-feira à noite de
maio, preparando-se para sair com sua mãe para vender balas – uma forma de
arrecadar dinheiro para a congregação – pelas ruas de São Paulo. Eleitora de
Eduardo Jorge – candidato que defendeu pautas como descriminalização das drogas
e união homossexual nas eleições de 2014 –, cabelo tingido de vermelho e
estudante de cinema, Carol Santos, 20 anos, é tudo isso e, ao mesmo tempo,
também líder do grupo de jovens da pequena e recém-criada igreja que frequenta,
no bairro da Mooca, zona leste da cidade.
A aparente contradição entre suas opções políticas,
religiosas e pessoais, contudo, não passa disso: uma aparente contradição. O
estranhamento é causado pela imagem estereotipada, aliada a certa dose de
pré-conceitos, que diz que o eleitorado evangélico é tal e qual as lideranças
da bancada religiosa. Classe média, Carol votou em Dilma Rousseff no segundo
turno de 2014, posicionou-se contra o impeachment,viu com extrema preocupação a
novela do fim e reabertura do Ministério da Cultura, concorda que parte de suas
crenças são conflitantes com propostas como as de Eduardo Jorge, mas acredita
que religião e política não deveriam se misturar. “É claro que sempre vai haver
uma influência, afinal, vivemos em uma sociedade com valores conservadores, mas
isso de bancada religiosa? Não, obrigada”.
“Nós não podemos confundir os líderes políticos, que têm na
religião um recurso de poder e mobilização eleitoral, com as formas de
comportamento, consciência e visão de mundo dos evangélicos como um todo”, diz
Roberto Dutra, sociólogo e professor da Universidade Estadual do Norte
Fluminense (Uenf). Para ele, quando o assunto é esse, faz-se necessário, apesar
de óbvio, ressaltar que os evangélicos são, como qualquer outro grupo,
heterogêneos e com opiniões diferentes. “Há na classe média brasileira
intelectualizada um preconceito grande contra essa população, existe uma
premissa de que eles são burros e não sabem olhar com distanciamento a pauta
política de congressistas evangélicos. Claro que isso não é verdade”, diz.
Hoje, o Congresso conta com 75 deputados federais e três
senadores evangélicos. É a maior bancada evangélica da história. E, cada vez
mais, tem chamado a atenção de cientistas sociais e políticos em busca de
alianças. Segundo Dutra, desde que teve início a crise política, que culminou
no impeachment de Dilma, o grupo começou a se posicionar como um bloco coeso.
Além de ter apoiado maciçamente o afastamento da presidenta, votando pelo
impedimento (muitas vezes, em nome de Deus) não é de hoje que tem defendido
pautas cada vez mais alinhadas à direita do espectro político: seja no campo
dos costumes ou no de políticas sociais e econômicas. A coesão, contudo, nem
sem sempre foi a tônica. Atualmente, seguindo uma tendência que não é apenas
brasileira, parece ter encontrado na bíblia uma forma de seduzir um filão mais
conservador da sociedade, mas que, não por isso, representa o eleitorado
evangélico como um todo.
“Nós não podemos confundir os líderes políticos, que têm na
religião um recurso de poder e mobilização eleitoral, com as formas de
comportamento, consciência e visão de mundo dos evangélicos como um todo”
“Eu acho que recentemente existe um uso do cristianismo para
a defesa de pontos de vista de direita. É claro que um político evangélico vai
acabar colocando em sua atuação um pouco de seus valores, mas isso não pode ser
o foco. Acho uma utopia acreditar que as opiniões pessoais não vão influir, mas
o problema é fazer política em nome da religião”, comenta Carol. Enquanto
candidatos evangélicos se aproximaram cada vez mais da direita, Dutra avalia
que partes mais progressistas do espectro político e da sociedade se afastaram
desse eleitorado nos últimos anos – especialmente depois de enfrentamentos mais
duros no Congresso, como no caso em que o controverso pastor Marco Feliciano
(PSC-SP) presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
Para Dutra, a esquerda é incapaz de entender a importância
de algumas questões que são caras ao eleitorado evangélico, taxando-as, muitas
vezes, de puro conservadorismo. O tema familiar é um caso exemplar disso. “O
medo de perder a família é grande entre os fiéis, porque na maior parte das
vezes eles têm uma origem mais humilde, em que questões como violência,
alcoolismo e pobreza colocam em risco a unidade familiar. Ou seja,
primordialmente eles se sentem ameaçados por questões práticas do dia a dia”,
comenta o sociólogo. Ao ignorar a questão sob uma ótica mais ampla, a esquerda
tem deixado de bandeja para a direita um discurso limitado sobre o tema, como a
defesa de que a homossexualidade está ameaçando a família brasileira. “Eles são
os únicos que estão tematizando isso e acabam conquistando parte do eleitorado
com esse discurso”, completa. Hoje, está em definição na Câmara o projeto de
lei do Estatuto da Família, que, aprovado em uma comissão especial, define,
entre outras coisas, como família apenas a união entre homem e mulher.
Na fala de posse dos ministros de Michel Temer, o presidente
interino disse querer fazer um “ato religioso com o Brasil” ou uma espécie de
“religação” dos brasileiros com “valores fundamentais” da sociedade. Alguns
dias antes, ainda em abril, tinha sido abençoado pelo conservador pastor Silas
Malafaia, que defende temas como a cura gay. Além disso, tem recebido apoio
expressivo de representantes da bancada evangélica, como Feliciano. Para Dutra,
esses são indícios de que o presidente interino pode tentar usar a pauta
conservadora dos costumes, tão em evidência entre os políticos evangélicos,
para tentar fidelizar os fiéis brasileiros – que, segundo o censo de 2010, são
hoje 22% da população.
Para Dutra, a esquerda é incapaz de entender a importância
de algumas questões que são caras ao eleitorado evangélico, taxando-as, muitas
vezes, de puro conservadorismo.
“Acredito que essa vai ser a tentativa de Temer, mas aborto,
homossexualidade e drogas são temas menores quando comparados com os sociais.
Do ponto de vista desse eleitorado, o que pega mais forte é mesmo a questão social:
como viver o dia a dia. Ao mexer em programas sociais, saúde e educação, ele
pode ter uma surpresa negativa”, diz a socióloga Maria das Dores Machado,
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além disso, Dutra
ressalta que os candidatos evangélicos ainda não conseguiram dar um salto do
legislativo para o executivo. Para ele, as pautas conservadoras fidelizam sim,
mas, por enquanto, mostram-se inócuas quando há a necessidade de conquistar
mais votos.
“Em uma eleição legislativa não há a exposição das ideias e
defesas de um candidato como na executiva. Isso mostra que as pessoas comparam
e não se deixam levar apenas por temas que envolvem costumes”, diz Dutra. Ele
também lembra que a proliferação de pequenas igrejas tem formado no Brasil
pequenos currais eleitorais. O frequentador da congregação acaba votando no
pastor, ou em quem o pastor indica, mais por um sentimento de “votar no
candidato da comunidade” do que por qualquer outro motivo. Esse tipo de igreja,
contudo, não é uma regra. Durante a reportagem do EL PAÍS, todos os fiéis
entrevistados, de cinco congregações diferentes, disseram que o pastor evita
tocar em assuntos políticos diretamente - tanto é que a maior parte das pessoas
concordou em conversar contato que o nome da congregação fosse omitido do
texto.
Na rua Conde Sarzedas, especializada em produtos evangélicos
e distante alguns quilômetros do bairro da Mooca de São Paulo, onde fica a
congregação de Carol, o vendedor ambulante e pastor Adoniran Oliveira, 44 anos,
é um bom exemplo da análise feita pela socióloga Maria das Dores. À frente de
uma minúscula e humilde congregação na favela Açucará, em Osasco, Oliveira é
conservador nos costumes, mas coloca à frente de qualquer questão "os
degraus" que subiu durante, principalmente, os anos de Governo Lula. “É
claro que eu fico decepcionado com o PT, votei neles a vida toda e agora não
sei mais em quem votaria, mas eu não posso negar que eu e toda minha comunidade
mudamos de vida nesses anos, nunca ninguém olhou pro pobre como eles
olharam". Vestindo um terno azul bebê e uma camisa verde limão, Oliveira
diz que “é claro que eu não acho certo dois gays se beijando, mas eu oro
bastante para que eles encontrem o caminho de Jesus, o que mais posso fazer se
a vida é deles? Saúde e educação, com certeza são mais importantes do que
isso".
Adoniran Oliveira, pastor e ambulante /ANDRÉ DE OLIVEIRA
Na mesma rua, Fernando Henrique Carvalho, 36 anos, batizado
em homenagem ao ex-presidente tucano, FHC, é dono de uma loja e fiel da
Assembleia de Deus do Alto do Ipiranga, e, segundo ele próprio, um eleitor de
extrema-direita. Com o discurso mais conservador em voga hoje no Brasil –
defendido por políticos como Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que recentemente se
tornou evangélico – na ponta da língua, Carvalho defende que a ditadura militar
foi o melhor momento da história do país, que a ONU é comunista, que o Bolsa
Família é uma forma de comprar votos e que, emulando um comentário recente de
Malafaia, “o Ministério da Cultura era um antro de esquerdopatas”. Segundo
Dutra, as ideias do comerciante são o exemplo claro de quem os políticos
evangélicos estão acertando quando dão preferência a uma pauta baseada
exclusivamente no conservadorismo. “Não é à toa que o Bolsonaro virou
evangélico agora, isso é cálculo político. Mas do mesmo jeito que há quem
goste, há quem veja nisso oportunismo”, diz.
De volta à Mooca, os amigos de Carol, Jennifer Oliveira, 21
anos, e João Lucas, 20 anos, são menos incisivos que a menina em temas
delicados, mas também veem com desconforto a crescente interferência da
religião na política. “Por causa da importância que a bancada evangélica ganhou
no Congresso, tudo o que acontece ali está refletindo demais no nosso mundo.
Fica parecendo que o político evangélico é o evangélico e isso não tem sido
bom”, comentam os dois. Para eles, misturar as duas coisas é desrespeitar o
tempo do evangelho e dos assuntos espirituais. Segundo Maria das Dores, a
preocupação é constante entre os evangélicos: “O fato de algum político
evangélico ser corrupto ou participar de qualquer disputa polêmica traz um ônus
muito grande para eles”.
Jennifer Oliveira e João Lucas, estudantes /ANDRÉ DE OLIVEIRA
Para a socióloga, até 2002, o discurso da ética na política
prevalecia entre a maior parte dos candidatos evangélicos, mas com o
envolvimento de muitos deles em escândalos, os costumes se transformaram
gradativamente na principal plataforma. “Como o Eduardo Cunha [PDMB-RJ], por
exemplo, pode se dizer evangélico e participar de tantos escândalos? Ele mostra
bem que pouco importa se a pessoa é a favor ou contra o aborto, o que importa é
como ela age”, comenta Jennifer, que é estudante de Farmácia. Envolvido em uma
série de polêmicas políticas e suspeitas de corrupção – entre elas, o fato de
ser dono de uma frota de oito carros de luxo registrados em nome de uma de suas
empresas, a Jesus.com –, o presidente afastado da Câmara dos Deputados pode ser
considerado hoje o líder evangélico mais conhecido do Brasil. “Não dá pra ser
evangélico e roubar. Impossível”, conclui Jennifer.
Piercing, drogas, homossexualidade... Qual é o lugar de cada
uma dessas coisas na sociedade e como elas se relacionam com a religiosidade?
“Tudo o que eu penso e que diverge dos pensamentos cristãos é assunto de
conversa com meu pastor. A gente conversa, ele me explica coisas do evangelho,
me orienta e eu tiro minhas conclusões”, conta Carol. E a política? Bom, já
sabe. Para ela, a política deve passar bem longe disso tudo. Segundo Dutra, o
posicionamento da garota e de seus amigos será cada vez mais frequente nas
igrejas evangélicas: maior escolaridade e o fato de os jovens já serem de
gerações que nasceram frequentando congregações com seus pais, sem terem
passado pela marcante experiência da conversão, explicam um pouco disso. Dutra
conclui dizendo que hoje está tudo em aberto: "Ao mesmo tempo em que
aumenta a politização conservadora da religião, aumenta também o sentimento de
que a fé das pessoas está sendo manipulada por interesses próprios."
Fonte: http://brasil.elpais.com/
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